A ÉPOCA EM QUE O BRASIL BARROU MILHARES DE JUDEUS QUE FUGIAM DO NAZISMO

Documentos diplomáticos mostram que consulados brasileiros recusaram ao menos 16 mil pedidos de visto de judeus que fugiam do Holocausto ou tentavam reconstruir suas vidas após a Segunda Guerra Mundial.

Foto: Yad Vashem / Moradores do bairro judeu em Chelmza, Polônia, país invadido por tropas nazistas em 1939

Por BBC NEWS

Em julho de 1938, o cônsul do Brasil em Budapeste (Hungria), Mário Moreira da Silva, enviou ao ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, uma circular secreta em que informava ter recusado a concessão de vistos a 47 pessoas “declaradamente de origem semita” (judeus) que buscavam migrar para o Brasil.

Eles tentavam fugir enquanto o governo húngaro, aliado da Alemanha nazista, punha em marcha uma série de políticas antissemitas – que, seis anos depois, culminariam com o envio de meio milhão de judeus húngaros para campos de extermínio.

O cônsul em Budapeste já havia se posicionado contra a entrada de judeus no Brasil. Em ofício enviado ao ministro meses antes, ele os chamara de “assaz (muito) perniciosos” e “inassimiláveis, que só sabem trabalhar – sem o menor escrúpulo e só visando o lucro – como intermediários de negócios, nada produzindo de útil”.

Não era uma posição isolada no governo. Documentos diplomáticos compilados por Maria Luiza Tucci Carneiro, professora do Departamento de História da USP, mostram que o Brasil rejeitou ao menos 16 mil pedidos de visto feitos por judeus que fugiam do Holocausto ou tentavam reconstruir suas vidas após a Segunda Guerra.

Os documentos – que estão sendo incorporados ao Arquivo Virtual Sobre Holocausto e Antissemitismo (Arqshoah) – jogam luz sobre um lado pouco conhecido da história da imigração no Brasil num momento em que o governo Jair Bolsonaro se aproxima de Israel ao mesmo tempo em que sinaliza uma postura mais restritiva diante de refugiados e imigrantes.

No último dia 9, Bolsonaro anunciou que o país havia deixado o Pacto de Migração da ONU, acordo com diretrizes para a recepção de migrantes assinado por 164 nações em dezembro.

Adolf Hitler discursa para soldados em Dortmund, em 1933; nos anos seguintes, Alemanha pôs em marcha plano para exterminar judeus. — Foto: Yad Vasehm

Formação étnica do Brasil

Segundo Tucci, as recusas de visto a judeus seguiam ordens do alto escalão do governo. A partir de 1937, o Ministério das Relações Exteriores emitiu ao menos 26 circulares secretas impondo barreiras à entrada do grupo, considerado indesejável para a formação étnica do povo brasileiro numa época em que o Brasil estimulava a migração de europeus brancos e cristãos. Restrições semelhantes foram impostas a estrangeiros negros e asiáticos.

No caso dos judeus, porém, as barreiras afetavam um grupo que se via cada vez mais acuado por medidas discriminatórias em boa parte da Europa. Calcula-se que cerca de 6 milhões de judeus tenham sido mortos pela máquina de guerra nazista, o maior genocídio do século 20.

As regras que barravam judeus vigoraram mesmo após o Brasil declarar guerra à Alemanha e enviar soldados para a Itália, só perdendo validade no fim do governo de Eurico Gaspar Dutra, em 1950, quando os horrores do Holocausto já haviam sido amplamente difundidos.

“Os documentos derrubam o mito de que o Brasil sempre recebeu imigrantes de portas abertas e reforçam a postura colaboracionista do governo Vargas com a política antissemita da Alemanha”, afirma Tucci à BBC News Brasil.

Segundo ela, o governo impunha restrições a judeus e outras minorias por meio de documentos secretos enquanto, no exterior, buscava apresentar o Brasil como um país “com projetos humanitários e salvacionistas”. Uma circular que tratava do tema ordenava que a recusa de vistos a judeus deveria “ser justificada sem qualquer referência à questão étnica”.

Autora de vários livros sobre o antissemitismo no Brasil, Tucci estuda os documentos desde 1995, quando o Itamaraty abriu seu acervo sobre o tema. Ela diz acreditar que os números de vistos recusados a judeus tenham sido muito superiores aos que já contabilizou.

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