A confirmação de Renan Calheiros (MDB-AL) como relator da CPI da Covid, instaurada no Senado na última semana, posicionou o Congresso Nacional como novo palco de uma disputa, forjada na política de Alagoas, que opõe o senador ao deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara com apoio do governo Jair Bolsonaro.
Embora os dois lados tenham buscado denominadores comuns desde 2018 — a pauta mais recente a uni-los é a possível indicação do alagoano Humberto Martins a uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) —, interlocutores dos parlamentares relatam que o clima de “desconfiança mútua” se acirrou com a retomada do protagonismo de Renan, visto como ameaça à trajetória de ascensão de Lira.
A eleição de 2022, segundo atores políticos relataram ao Globo, é o horizonte que dará o tom da queda de braço entre Renan e Lira. Reservadamente, dois interlocutores não descartam a possibilidade de composição entre ambos na corrida pela sucessão do governador de Alagoas, Renan Filho (MDB), que fez gestos no passado recente a adversários do pai, inclusive Lira. Outras três lideranças partidárias, no entanto, veem como cristalizada a divisão, graças ao pano de fundo nacional, que conta com uma possível candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aliado de Renan, contra Bolsonaro, de quem Lira tenta manter certa distância sem romper com o governo federal.
A volta de Lula ao cenário eleitoral fortalece o palanque local dos Calheiros, avaliação feita até por adversários. Embora Renan não vá concorrer em 2022 — seu mandato de senador vai até 2026 —, vitórias de aliados no estado e uma possível eleição do petista cacifariam o emedebista a voos mais altos, como a tentativa de voltar à presidência do Senado, vontade adormecida desde a derrota ante Davi Alcolumbre (DEM-AP) em 2019. Segundo aliados, que afirmam não ver este “desejo” em Renan por ora, uma alternativa seria endossar a candidatura de um correligionário do MDB. Lira, por sua vez, quer disputar novo mandato como deputado no ano que vem, para depois buscar a reeleição à presidência da Câmara. Este último plano é considerado mais difícil para Lira em caso de vitórias de adversários dele e de Bolsonaro — uma “mudança de eixo de poder”, nas palavras de uma pessoa próxima a Renan.
Depois que movimentos do Planalto de uma aproximação discreta com Renan foram implodidos pela base bolsonarista, que tentou barrá-lo na relatoria da CPI da Covid via decisão judicial, o senador fez um discurso repleto de críticas e indiretas ao governo federal, na terça-feira, ao ser oficializado no cargo. Na véspera da instauração da CPI, Lira anunciou um plano para acelerar a reforma tributária na Câmara, em um aceno ao mercado e ao governo.
Segundo um político alagoano que exerceu mandatos em Brasília e no estado, Lira e Renan “são como jacaré e cobra d’água”, expressão usada para designar adversários que trabalham nos bastidores e evitam uma briga conflagrada. Renan e Benedito de Lira (PP), pai do atual presidente da Câmara, elegeram-se juntos ao Senado em 2010, com apoio do então presidente Lula. Em 2014, a disputa ao governo de Alagoas que opôs Renan Filho a “Biu”, como é conhecido no estado, foi descrita como “tensa” e “bélica”. Quatro anos depois, quando Renan Filho se reelegeu com ampla vantagem, Biu fez uma campanha de oposição a pai e filho e não conseguiu renovar o mandato no Senado. Desgastado pelo avanço da Lava-Jato, Renan se reelegeu graças aos esforços do filho, segundo lideranças locais. Ficou 250 mil votos atrás de Rodrigo Cunha (PSDB), que conquistou a primeira vaga ao Senado em 2018.
Apesar das arestas entre si, Lira e Renan veem de forma favorável uma eventual escolha do atual presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, para a vaga que se abrirá em julho no STF. O nome de Martins, membro da Igreja Adventista, ganhou força como a possível indicação evangélica à Corte prometida por Bolsonaro a pastores, em meio a resistências aos nomes do advogado-geral da União, André Mendonça, e do procurador-geral da República, Augusto Aras.
Apoiado por Renan quando chegou ao STJ, em 2006, Martins se aproximou recentemente de Lira, que se livrou de ter seu mandato e a candidatura cassados em 2018 pela Lei da Ficha Limpa graças a uma liminar que depende de análise no STJ. O presidente da Câmara foi condenado na Justiça de Alagoas por improbidade administrativa e dano ao erário, por suposta irregularidade no uso de verbas da assembleia estadual. Lira também responde a uma ação no STF por suposto recebimento de propina na Companhia Brasileira de Transportes Urbanos (CBTU) — o que ele nega.
Caminhos cruzados
Disputa entre as famílias
Em 2010, Benedito de Lira (PP), pai do atual presidente da Câmara, Arthur Lira, teve votação surpreendente e se elegeu pela primeira vez ao Senado, à frente de Renan Calheiros, que ficou com a segunda vaga. Em chapas distintas, ambos tiveram o apoio do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva naquele ano. Já em 2018, numa campanha repleta de ataques, Renan se reelegeu, e Benedito de Lira, não. A primeira vaga do estado, no entanto, ficou com Rodrigo Cunha (PSDB). Foi a segunda derrota consecutiva imposta pelos Calheiros ao pai de Arthur Lira, também superado com ampla vantagem por Renan Filho na eleição ao governo do estado em 2014.
Juntos no impeachment
Membro da tropa de choque de Eduardo Cunha (MDB-RJ) no impeachment de Dilma Rousseff (PT), Arthur Lira ascendeu ao comando da Câmara dos Deputados no início deste ano com o apoio do governo Bolsonaro. Ele disputou com Baleia Rossi (MDB-SP), candidato de Rodrigo Maia e desafeto do presidente. Por isso, lideranças consideram improvável que Lira repita — numa possível candidatura do ex-presidente Lula ao Planalto — o apoio dado pelo pai ao petista no passado, embora ponderem que ele tampouco precisa colar seu nome a Bolsonaro na campanha. Renan, embora tenha votado pelo impeachment de Dilma, apoiou Fernando Haddad (PT) em 2018 e mantém diálogo com Lula.
Uma pauta comum
Com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), marcada para 5 de julho, um dos nomes que disputam a cadeira na Corte, com bênçãos nos bastidores tanto de Lira quanto de Renan, é o do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins. Além de evangélico, atributo que Bolsonaro prometeu buscar no próximo indicado ao Supremo, Martins tem bom trânsito com lideranças do Centrão. O STJ mantém sob análise uma liminar que livrou Lira da Lei da Ficha Limpa. Apesar de mais afastado recentemente, Renan é amigo de longa data do presidente do STJ. Ambos, Renan e Lira, são réus no STF.
Comando do Legislativo
Eleito três vezes presidente do Senado (2005, 2013 e 2015), Renan se cacifaria a buscar novamente o cargo em caso de vitórias de aliados nas eleições estadual e nacional. Pessoas próximas acreditam que ele poderia, em vez de buscar o comando do Senado no início de 2023, articular seu nome para o biênio que vai até 2026, ano de seu próximo ciclo eleitoral. Lira deve tentar se reeleger presidente da Câmara após as eleições de 2022, aproveitando a brecha autorizada para reeleição em legislaturas distintas. As duas Casas nunca foram comandadas simultaneamente por parlamentares do mesmo estado no pós-ditadura.
O Globo